(Atenção: contém spoiler)
O filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, vem recebendo os louros de parte considerável da crítica e do público. Um tradicional público supostamente “mais crítico” pareceu comprar a grande estratégia de marketing do filme: vê a obra como “política”. Esses espectadores parecem usar o filme para se posicionar de forma afirmativa diante de nossa atual questão existencial: foi ou não foi golpe? O elenco se posicionou muito claramente quando do lançamento da obra em Cannes, em maio, exibindo cartazes de denúncia. No nosso Fla X Flu, ou melhor, Sport X Náutico habitual, isso já fez o filme ganhar, ao mesmo tempo, olhares simpáticos e depreciadores a priori, numa pobreza crítica que compactua com as limitações estéticas da obra. Aqui se ensaiará uma crítica à obra em si, para além das projeções que o marketing de esquerda e a crítica rasteira de direita quiseram projetar acerca do filme antes mesmo de que fora exibido ao grande público.
Quando passou a ser visto nos cinemas, houve em geral uma maré favorável ao filme, vendo-o como uma obra genial, e colocando Kleber Mendonça como um dos melhores cineastas em atividade. Aqui se discorda de tal veredito. Aquarius é um filme que consegue ser ainda mais fraco do que o mediano Som ao redor. Se o primeiro grande sucesso do diretor quis ser um Casa-grande & senzala (ou Sobrados e mucambos) sem conseguir sê-lo, Aquarius consegue ser apenas uma novela bonitinha para nossas esquerdas de vitrine. Há tantos e tão constantes chavões adorados por nossa esquerda hipster–pós-moderna reiterados no filme que parece que a obra foi feita apenas para este segmento do público. O que não seria problemático se a crítica, particularmente a pernambucana, não tivesse se seduzido de forma tão inocente diante de um filme tão “novelístico”. Afinal, uma novela de sinal contrário, continua sendo uma novela. Outro ponto: um cineasta pode fazer militância através de seus filmes, tudo bem; é válido e, em algumas circunstâncias, mesmo necessário. Mas a crítica não conseguir se distanciar e refletir de fato sobre o evidente caráter estereotipado da obra, é demasiada complacência ou sectarismo ideológico.
Aquarius é um novelão. Os maus são maus mesmo. Os bons são bons mesmo. Praticamente não há ambiguidade. Os personagens não mudam, são inflexíveis. E o próprio filme, que ensaia uma situação humana e social intrigante, não consegue concretizar tal complexidade para além do tom novelístico mencionado.
Sônia Braga vive Clara, uma senhora aposentada de 65 anos, com filhos já adultos e criados, e netos saudáveis. Vive de aposentadoria e, como deixa claro ao longo da trama, da renda dos cinco (repito, cinco!) apartamentos que possui. Tem um Jeep novo na garagem (olha o merchan pernambucano aí, gente! Nada contra!). Mas resiste a vender o apartamento onde cresceu e ainda vive a uma imobiliária que quer construir um espigão em seu lugar. Não há meios-termos: um quer resistir, outro quer conquistar. Cada vez mais Clara parece estar sozinha e acuada, objetiva e subjetivamente. Ex-vizinhos a ameaçam na rua. A filha aburguesada (vivida por Maeve Jinkings) quer aceitar “os quase 2 milhões de reais” que a imobiliária quer pagar. Clara começa a ter visões e pesadelos de perseguição. A imobiliária se encarrega de molestar sua vida ao máximo.
O encanto que o filme produz em nossa crítica parece estar em parte relacionado a isso. Há uma identificação de nossa esquerda de vitrine com a resistência de alguém da classe abastada ao capitalismo. É um paradoxo interessante. Poderia e deveria ser melhor explorado. Mas Aquarius só consegue ver nisso uma novela entre bons e maus. De forma que soa ingênua e até caricatural uma personagem como Clara, que a despeito de sua “teimosia de velha”, como caracteriza a própria filha, é uma pessoa que apenas tem sua posição reafirmada ao longo da obra, do começo ao fim, para gozo do público de esquerda de vitrine bem-intencionada.
Muitos clichês permeiam o filme: desde a rasa tipificação dos personagens centrais (protagonista e antagonista unidimensionais) até o próprio desenrolar da trama em diversos episódios impactantes que reforçam o maniqueísmo da história. Junte-se a isso os diversos chavões que o público de gueto de esquerda adora encontrar: Clara fuma maconha, ouve MPB dos anos 70 (a cena em que diz para o sobrinho tocar para a namorada uma música de Maria Bethânia “para mostrar que é intenso” é de uma presunção tola), não tem TV, bebe vinho, vai a festas em favela, aceita o filho homossexual, é mulher empoderada, vive sozinha, faz sexo de forma livre, aceita a modernidade do MP3 sem abandonar e amar os LPs, possui muitos livros etc. etc. e muitos etc. Um simbolismo digno de nota é o da luta contra o câncer com prejuízos estéticos (a mastectomia decorrente do tumor) como uma alegoria “resistente” (ah, a bendita resistência!) da luta feminista.
Aquarius parece querer ser o “pacote completo” de nossa esquerda de vitrine. Há até a ida da personagem principal a uma festa de música cubana, com direito à bandeira do país de Fidel. Amiga de sua empregada, a quem dá os parabéns no aniversário, Clara vai a uma festa na zona pobre ao lado do bairro de Boa Viagem, onde mora. Ali, em Brasília Teimosa, nossa esquerda bem-intencionada deve se regozijar com a “humanidade” da personagem que abraça pobres e se compadece com as injustiças do mundo, como no relato sobre o filho da empregada de Clara, morto por atropelamento em que o motorista culpado fugiu. A relação com os empregados domésticos abre mais pano para a culpa de nossa culta classe média militante. Em outro momento do filme, uma personagem justifica o roubo de uma antiga empregada da seguinte forma: “nós as exploramos e algumas nos roubam de vez em quando, e assim vamos levando”. Ponto no placar da esquerda de vitrine, que gosta de se culpar pela vida em um país desigual, mas em nenhum momento se vê como capitalista e nem mesmo como alguém que usufrui do melhor do que a sociedade de mercado proporciona.
Além disso, o tiro da narrativa sai pela culatra. A “vítima social” pressionada pelos ditames desmedidos da construtora é, no final das contas, a vilã — em termos de estrutura narrativa, Clara é aquela que atravanca o desenrolar da trama, impedindo o sujeito de entrar em comunhão com seus objetivos –, presa dentro de seus interesses pequenos e orgulho intransigente, é muito mais mesquinha do que o próprio Diego. Afinal, ela estava realmente prejudicando os vizinhos que já haviam se mudado (todos!); mas o que importa, não é mesmo? O sangue tem que ser derramado desde que se resista ao “mal-do-século” — e aqui a referência ao romantismo cabe muito bem –, o anticristo transfigurado da nossa época: o capital.
Nossa esquerda de vitrine é, em grande parte, apenas pose. E Clara, em seu saudosismo romântico, é seu “pacote completo”. Segundo a análise da crítica Luciana Veras: “recordar e ter o direito de sorver suas lembranças — e relembrar é se contrapor ao capitalismo vigente”. Karl Marx deve estar se revirando no túmulo com uma esquerda que tem como símbolo alguém que tem cinco apartamentos (leia-se: usufrui da especulação imobiliária que critica!), passa o dia na rede, vive de renda e tem um carro zero na garagem. Com um símbolo assim, não espanta que o filme tenha sido celebrado justamente por uma esquerda de vitrine.
Muitos endeusaram Mendonça e sobretudo Sônia Braga que, se não compromete a obra, tampouco brilha como excelente atriz que nunca foi. Apenas poucos conseguiram, como a crítica Ângela Prysthon, apontar falhas na obra, como quando disse: “Aquarius mantém um certo didatismo nos diálogos — sobretudo na primeira parte –, agravado talvez pela dramaturgia mais convencional e por uma maior abertura ao típico”. A vontade de se diferenciar da novela está mais na fotografia, que, no entanto, parece mais uma apologia ao passado, e na relativa lentidão da obra, que se faz demasiado longa, com 2 horas e 20 minutos de duração.
Até a metade do filme, mesmo tantos clichês ainda faziam as questões de fundo funcionarem — como as relações familiares a la Clarice Lispector –, mas, a partir da fixação tola em vilanizar o mal condensado na figura de Diego, perdeu-se a mão, e, ainda que a estrutura de fundo tenha relativamente se mantido, a superfície do filme tomou um rumo completamente diferente, que culminou com o desfecho perdido, solto do restante da trama que até então estava amarrada.
A insistência em justificar o mal surge como um recurso prototípico das ficções infantis: o mal precisa ser justificado, neste caso, claro, pela posição socioeconômica, caindo na falácia reducionista dos nossos tempos de que o “dinheiro corrompe caráter”, e outros análogos que nem de longe retratam a complexidade do mal social (e pensar em quanta filosofia nesse terreno foi gasta em vão para dar nisso!). Este recurso de justificar atos dos personagens “maus” é no mínimo amador.
Sendo apenas um novelão, há de se apontar uma grande qualidade que não foi notada por nossos críticos. O ator Humberto Carrão, que interpreta o jovem Diego, funcionário da empresa imobiliária responsável por pressionar Clara, faz um vilão à moda das novelas. Não é desabonador o que se diz aqui, pelo contrário. Carrão interpreta um grande vilão, tal como Odete Roitman de Vale Tudo e Carminha de Avenida Brasil. Dentro do que lhe foi pedido, Carrão brilha muito acima dos outros personagens. Como de todo vilão, pouco sabemos de seus motivos além de sua mesquinharia pessoal. E Diego é um vilão “pacote completo”: um exato contraponto à Clara. Se a personagem principal é a esquerda de vitrine, ideal tipo bobo e simplificado da realidade, Diego é um direitista que estudou Business nos Estados Unidos, branco, manipulador, cínico, fruto da sociedade patrimonialista e, estereótipo-mor, racista. Nada se sabe sobre ele, suas ideias, desejos ou qualquer coisa relativa a seus gostos. É só um vilão. Que Humberto Carrão constrói brilhantemente tal como pedido, com direito a olhares cínicos e ironias em grande estilo.
Outro ponto positivo do filme é sua divulgação. Esperaram o timing correto para lançá-lo, movimentaram a opinião pública, buscaram causas “corretas”, colocaram-se como “resistentes”, o que sempre soa simpático. No cartaz do filme, um golpe de mestre: usaram a miséria intelectual do colunista de Veja, o caçador de bruxas Reinaldo Azevedo, que disse antes mesmo de assistir ao filme: “O dever das pessoas de bem é boicotar Aquarius“. Propaganda invertida de graça. Mais um ponto para a divulgação do filme.
Uma frase da personagem Clara, presente também no trailer, ilustra bem o filme e sua recepção pela crítica e por parte do público: “Quando vocês gostam, é vintage. Quando não gostam, é velho!” Os que gostaram de Aquarius possivelmente o acham vintage. É vintage resistir ao capitalismo (a metáfora câncer-cupim-mercado é tão pueril!), especialmente de frente para o mar e com argumentos sentimentais que fazem sentido apenas para o indivíduo romântico tardio e deslocado. O folclorismo saudosista arrasta nossas esquerdas. Não será espanto se qualquer dia desses Sônia Braga vir a ser tombada pelo IPHAN. Mas não é que o filme seja velho. Ele apenas não diz nada que não seja o velho lema “resistir é preciso”. Parece tão perdido quanto nossa esquerda, sem proposta alguma. Uma pena.
Por Gustavo Alonso e Carolina Palha